Pedro é um pacato funcionário público – mesmo que isso pareça uma redundância – que vive monótona-rotineiramente um dia de repetição e cartas marcadas – e há novidades diárias na vida de um funcionário público?

Todo dia é a mesma coisa. O mesmo caminho, os mesmos paralelepípedos das calçadas – as mesmas pedras mal colocadas que escondem água em baixo e quando você pisa molha sua calça – os mesmos muros pichados – com garranchos ilegíveis intercalados por placas propositalmente ingênuas que prometem doações aos necessitados se o muro permanecer branco – as mesmas esquinas com meio-fio alto – que faz com que idosos escalem o Pico da Neblina e crianças se joguem do Cânion Guartelá – os mesmos sinaleiros descompassados piscando freneticamente – e fazendo o pedestre correr uma São Silvestre para chegar ao outro lado a fim de evitar ser colhido pelos bólidos raivosos – as mesmas pessoas no vai e vêm de expressões ranhetas e passos binômios em eterno replay dos piores momentos e o mesmo relógio, o mesmo ponteiro que bate no nove e o outro que bate no doze. Assim, Pedro é um pacato funcionário público.

No intervalo da mecânica repetição diária da reprise trabalhista reescrita e readaptada, Pedro ousa pensar poder ser mais que uma roda dentada insignificante da engrenagem que gira sem que ele gire, que produz sem que ele produza, que é sem que ele seja e que joga na cara todos os dias a sua descartabilidade insignificante. Ele faz parte de toda aquela engrenagem, que é maior do que a própria engrenagem em si, sem nunca pertencer. Por isso, no intervalo, escreve. Imagina um mundo onde quem manda na engrenagem é ele, quem faz a engrenagem é ele, quem cria a engrenagem é ele. Pedro se embriaga com sua momentânea onipotência. Pode tudo e ninguém ousará o contrário. Na ponta de seu lápis, destinos são traçados, despedaçados, remontados. A dor e a alegria, o tormento e o riso, o desespero e a esperança. Tudo Pedro controla.

Mas ser mais do que é faz com que Pedro seja apenas quem ele é. O onipotente se sente pequeno, pois, apesar de ser e fazer tudo, estar e não estar em tudo, Pedro nunca será mais do que ele onipotentemente é. E ser tão pouco, querendo ser tão muito, coloca dúvidas em sua mente. Ele não controla o destino de seus personagens, pois ele é controlado pelo destino que controla o destino de seus personagens. Ele não tem certeza se o que quer é o que quer fazer ou o que querem que queira. Se ao querer apenas cumpre o que já estava escrito ou escreve como o destino será. A inquietação e a dúvida inundam Pedro com uma enxurrada de incompetência de não se precaver do que já se sabe que vai acontecer. Ele vai matar. É isso! Todos os personagens serão mortos, assim, pensa Pedro, escapará do destino e será o mais impiedoso e inesperado dos onipotentes. Mas e o apego aos personagens? Eles têm tomado significativo tempo em sua mente. Matá-los não é afirmar o que se tornou, mas, sim, negar a si próprio. Pedro não matará nenhum personagem. O complexo divino o colocou em uma posição de preservar sua criação.

O relógio marca quatro da tarde. O monolítico dia de Pedro chega ao fim. Seu passatempo o levou a uma encruzilhada pior do que sua própria vida. Ele coloca sua pasta marrom de couro velho e encardido embaixo do braço e se despede dos colegas. Escuta sempre os mesmos murmúrios de cabeças baixas que olham para o vazio de suas telas de computador. A trilha da repartição é de teclas de computador batidas a esmo, cliques de mouse e rápidas tossidas que parecem ter como única finalidade quebrar o silêncio. Pedro caminha pelo longo corredor para descer a escadaria. No terceiro degrau, tropeça. O pé direito se entorta, o lado esquerdo do corpo vai de encontro aos degraus e a velocidade da descida vai acelerando – para baixo todo santo ajuda. Pedro rola pela escada em “L”. Na curva de noventa graus, bate a cabeça com força. Os ouvidos mais atentos conseguem captar o estalar de um osso ou outro. Ele já perdeu a consciência, mas não vê nenhum filme de sua vida passando em frente aos olhos, afinal seria uma tediosa montagem insípida. Pedro se estatela na entrada do prédio. O sangue que escorre de sua cabeça cortada forma uma pequena poça no petit-pavé branco. Pela primeira vez, a mera roda dentada atrai a atenção de um punhado de transeuntes. Teve até a pasta de couro velha roubada. Assim é a vida e como ela termina. Sem glamour nenhum, Pedro morre na calçada como se sua cabeça fosse uma ilha cercada de sangue por todos os lados. Em breve, a repartição chamará um aprovado em concurso para ocupar a enfadonha vaga. Se Pedro não tem coragem para matar seus personagens, eu tenho.