O local é sombrio, frio, sem cores e cortado por um silêncio que ecoa de forma retumbante. Já não penso mais em nada. Cansei de pensar, cansei de entender, cansei de ser o que sou e tentar ser o que eu queria ser. Já não me escutam mais, já não me leem mais, já não dão bola para o que eu penso, para a análise que faço das coisas. Resumindo: fiquei obsoleto, sou o resto de um pedaço quebrado que um dia teve uma função. Eu mesmo não espero mais nada de mim. Mas ainda estou aqui. Estou aqui para lamentar o fim. Estou aqui para imaginar como poderia ter sido e para lamentar como está prestes a terminar.

Acho que estou mentindo quando digo que parei de pensar, parei de entender, afinal não é o contrário de tudo isso que estou fazendo? Eu sentia que tinha alguma importância, que era algo mais do que simplesmente eu. Sentia que tinha um papel, no mínimo, com alguma relevância, capaz de fazer alguma coisa para mudar a história de alguém ou de alguma coisa. O mundo ainda acontece, sou eu que não aconteço mais.

Senhor Lemos, o que fazemos com este equipamento?

Qual equipamento?

Este aqui. É algo estranho. Parece que há uma fenda para se colocar papel e várias teclas de plástico que acionam mecanicamente hastes metálicas. Parece ainda que as pontas das hastes batem em uma fita bicolor. É um equipamento estranho. Acho que não é usado há décadas. O que fazemos com ele?

Foi muito usado até os anos 90. Esse equipamento estranho foi capaz de indignar, emocionar ou simplesmente fazer saber milhares de pessoas. Talvez possa até ter conseguido salvar vidas. Se conseguiu salvar uma vida, então cumpriu o seu papel a contento. Pode jogar fora essa máquina de escrever.

A velha máquina de escrever foi quase uma parte do meu corpo. Quantas vezes não rebobinei as milhares de fitas que já passaram por ela. Ela perdeu sua função, mas seu legado se manteve em seu sucessor. Mas agora o legado está morrendo. Ainda bem que a máquina está indo para o lixo. Não precisará enfrentar o fim que se aproxima.

Senhor Lemos, o que fazemos com estas fitas marrons dentro destes plásticos?

Fitas? Plásticos?

Parece que há desenhos estranhos nas fitas. Mas é uma coisa meio maluca, não faz muito sentido.

Pode parecer sem sentido, porque isso é um pedaço do caminho até algo que impressiona muito as pessoas há muitas décadas. É o poder de congelar um momento da história e eternizá-lo. Pode ser usado tanto para o bem, como para o mal. Nós sempre tentávamos usá-lo para o bem, mas claro que nunca estivemos livres de, até sem querer, usá-lo para o mal. Pode jogar fora esse negativo e todos os outros que vocês encontrarem.

Senhor Lemos, o que fazemos com esse monte de rabiscos?

Não são rabiscos, são papéis com anotações. Rascunhos de momentos que moldaram nosso mundo dos quais fui testemunha ocular. Nomes e mais nomes de pessoas que podiam ajudar a fornecer explicações para o nosso cotidiano. Muitas já devem estar mortas agora e outras devem estar no ostracismo. Afinal de contas, o que vale a palavra de um especialista quando temos milhões de achólogos prontos a opinar sobre tudo com conhecimento de causa sobre nada. Jogue tudo fora.

Cada história me consumia algumas horas. Cada boa história me consumia ainda mais horas. Passei anos dando pedaços da minha vida para que as pessoas soubessem onde e como viviam. Sempre na esperança de o que fornecia a elas as ajudasse a tirar as melhores conclusões para moldar o mundo. Sempre tentei não interferir no que eu via, mas sei que isso era impossível. Não tinha como não deixar que meus valores não afetassem aquilo que eu estava vendo. Mas tenho a tranquilidade de que sempre me esforcei para tentar fazer isso. O mundo tinha cores naquela época e não era tão silencioso.

Senhor Lemos,o que fazemos com estes outros papéis?

Papéis? Isso já foi vida. Já alegrou e entristeceu muita gente. Já impulsionou mudanças e fez até com que o impossível acontecesse. Tudo que eu disse pode até parecer absurdo, eu nem achava que era capaz de alguma dessas coisas, mas agora que esses papéis perderam valor, vejo que participei de algo que realmente tinha alguma importância. Joguem fora todos os jornais que vocês encontrarem.

Senhor Lemos, já está quase tudo organizado aqui. Podemos ir?

Gostaria que alguém soubesse do fim, que alguém pudesse registrar o fim. Os leitores sempre reclamavam de histórias que noticiávamos com muito destaque e depois nem dávamos uma nota de pé de página sobre ela. Não queria que a minha vida fosse assim. Terminando como um número de ilusionismo… eu desaparecendo. Pensando melhor, acho que não vou desaparecer de repente. Fui me apagando ao longo dos anos. É um processo contínuo de caminhar ao desaparecimento. Não fui capaz de perceber os sinais a tempo e conseguir me preservar. Caso eu tivesse me preservado conseguiria deixar um legado. O jornal também foi assim. Por cinquenta e três anos trabalhei em um jornal impresso. Há três ele fechou as portas. Devia ser muito parecido comigo, não conseguiu perceber os sinais a tempo e morreu. Você lê jornal?

Não, senhor Lemos. Nunca li.

Revista?

Quando era criança li umas histórias em quadrinhos e só?

Escuta notícia no rádio?

Escuto música.

Assiste algum telejornal?

Quarta e domingo pra ver os gols da rodada. O que eu gosto de assistir são filmes cheios de ação e sangue.

Você não sabe o que acontece na sua cidade, no Brasil e no mundo?

Alguém comenta alguma coisa em alguma rede social, mas eu nem dou muita bola. Prefiro os memes e ver a vida dos famosos. Quem sabe um dia eu não chego lá.

Mesmo tirando tudo deste lugar e ouvindo tudo o que eu disse, imagino que você não faz ideia de qual foi a minha profissão.

Não, senhor Lemos.

Trabalhei com algo que hoje não tem muita importância. Algo que talvez morra. Eu fui jornalista. Minha profissão era mostrar para as pessoas o que estava acontecendo. Era dar voz a quem não tinha.

Mas hoje não precisa mais disso. Todo mundo pode falar o que quiser nas redes sociais.

Eu sei. Por isso eu não sou mais necessário. A sociedade decidiu que o meu papel não tem mais relevância neste mundo, como dizem, digital.

Vamos senhor Lemos. Está na hora.

Qual é o nome do lugar para onde vamos mesmo?

O lugar não tem um nome. Um local que não precisa ser lembrado não precisa ser nomeado. Mas creio que o senhor vai gostar de lá. Milhares de coisas estão acontecendo o tempo todo e há milhões que desejam saber ansiosamente o que acontece.

Eu vou poder ajudar essas pessoas a saber o que está acontecendo?

Com certeza. É tanta coisa acontecendo que o senhor não terá descanso. O problema é que há centenas de pessoas que não sabem nem como informar que estão falando para os milhões o que acontece.

Eu não me importo. Não é diferente deste mundo aqui.

O senhor tem razão, senhor Lemos. Por não ser diferente deste mundo e para que a competição seja justa, o senhor terá a missão de informar, mas com alguma dificuldade. Sem seus olhos, sem sua boca e sem suas mãos. Garanto que suas orelhas continuarão em perfeito estado. Agora vamos senhor Lemos. Milhões o aguardam. As pessoas querem saber e o senhor quer contar.