Eu estava embalado no leve balançar do ônibus. O barulho do motor, que antes era um estranho ao céu azul e à leve brisa tépida, agora se fundia sorrateiramente à paisagem e enganava até a mente, como se o silêncio da leitura não fosse silêncio sem aquele barulho. As páginas brancas do livro, que ganhavam um leve tom do espectro solar, eram as emissárias dos tipos que alegravam os meus olhos. Uma letra após a outra, uma palavra após a outra, uma frase após a outra e uma história que brotava na mente. Uma página após a outra e a história ganhava um galopar cada vez mais rápido, com novas e novas conexões que já tentavam antever o que estava por acontecer nas próximas páginas.

Se me perguntassem, por tão entretido estar na leitura matinal rodoviária urbana, não saberia responder se era o único passageiro do ônibus, se havia alguém no assento ao meu lado, se havia passageiros viajando em pé ou mesmo se o coletivo estava indo para algum lugar. Mas este momento quase onírico foi interrompido… minha mente levou alguns segundos para emergir ao mundo real novamente. No conjunto de bancos à minha frente, uma cena desenrolava-se entre uma senhora sentada e um senhor em pé. Em pouco tempo, minha mente conseguiu recapitular o que estava acontecendo.

A senhora, na faixa dos 65 anos, estava tranquilamente acomodada no conjunto de bancos destinados a idosos, deficientes físicos e gestantes. O acento da direita, ao lado da janela, estava vazio e ela viajava no acento da esquerda, ao lado do corredor. Após o giro da roleta do cobrador, um senhor com mais de 80 anos veio andando pelo corredor, com passadas firmes, demonstrando um claro temor de que o ônibus arrancasse antes que ele chegasse ao porto seguro de um acento livre. A senhora, que compreende a sensação, por compartilhar do mesmo temor, prontamente levantou-se quando o senhor se aproximou e a ele ofereceu o lugar. Com o ônibus arrancando do ponto, as mãos do octogenário quase não conseguiram alcançar a barra amarela para prevenir que fosse ao chão. O corpo dele balançava a cada troca de marcha do motorista. Ele não aguentaria muito tempo em pé.

A senhora estendeu a mão direita, sinalizando para que ele se acomodasse no banco. O senhor então disse que ela podia sentar ao lado da janela, que ele sentaria no corredor. Ela retrucou, dizendo a mesma coisa, mas ao contrário. Falou que ele sentasse ao lado da janela, que ela sentaria no corredor, pois o ponto de seu desembarque não estava muito longe. O senhor fez que não ouviu, ou talvez realmente não tenha ouvido, e novamente pediu para que a senhora sentasse no banco ao lado da janela e sinalizou com o dedo em riste que sentaria no banco ao lado do corredor. Percebi que ninguém daria o braço a torcer.

A senhora, que antes estava acomodada no banco tranquilamente, fechou o semblante, como se as palavras do octogenário fossem um desafio a sua individualidade, e reafirmou que sentaria ao lado do corredor. Ela praticamente determinou que o banco reservado a ele era o ao lado da janela. O senhor, que já começava a ser vencido pelo sacolejo do ônibus, tomou as palavras como uma afronta e disse em voz de comando para que ela sentasse ao lado da janela, que ele sentaria ao lado do corredor. A realidade se desenrolando em frente aos meus olhos já estava mais interessante que a ficção de papel em minhas mãos.

Alguém teria que ceder. E a senhora na faixa dos 65 anos cedeu sem ceder. Ela se encrespou, soltou aquele ar profundo de reprovação e foi para o fundo do ônibus sentar-se em outro banco. O conjunto de bancos estava livre, era todo do octogenário. Creio que ele pensou que a vitória não foi completa, pois ficou com o banco, mas não teve seu comando obedecido. Para surpresa dos passageiros, que haviam se convertido em plateia atenta do drama da vida real, o senhor não sentou no banco. Manteve-se, segurando com a pouca firmeza que lhe restava, em pé em frente aos bancos vazios. Mas os anos que lhe pesavam nas pernas venceram seu orgulho. Rapidamente, para que a plateia não percebesse, ele sentou no banco ao lado do corredor. Era o fim da história. Tentei voltar a ler o meu livro, mas o barulho do motor incomodava meus ouvidos e a luz do sol refletia o branco das páginas quase cegando meus olhos. Fato é que o momento quase onírico parecia enfadonho perto de pessoas reais, desempenhando histórias reais. Nenhuma ficção é melhor que a realidade.